Profissionais de saúde relatam esgotamento mental

POR Tribuna do Norte, 14/03/2021

Mariana Ceci
Repórter

Há um ano, “cansaço” é uma palavra frequente no vocabulário dos brasileiros. Para os profissionais da saúde que atuam na linha de frente de combate à pandemia, no entanto, o cansaço é mais do que uma palavra ou sentimento passageiro. Passados mais de 12 meses da confirmação da chegada do Coronavírus ao Brasil, a categoria encontra-se à beira do colapso pela exaustão física e emocional. Sobrecarregados e convivendo diariamente com o medo de contrair a doença e transmiti-la, transtornos de ansiedade, Síndrome de Burnout e de estresse pós-traumático passaram a ser cada vez mais presentes entre esses trabalhadores.
Créditos: Magnus Nascimento

Fisioterapeuta Ivanízia Soares, de 32 anos, foi uma das profissionais que sentiu o peso do medo de adoecer e sobrecarregar ainda mais seus colegas onde trabalha

Fisioterapeuta Ivanízia Soares, de 32 anos, foi uma das profissionais que sentiu o peso do medo de adoecer e sobrecarregar ainda mais seus colegas onde trabalha
Dados da Secretaria do Estado de Saúde Pública (Sesap/RN) apontam que 21 profissionais foram afastados por transtornos mentais relacionados ao trabalho em 2020. No município de Natal, a Secretaria Municipal de Saúde não possui um levantamento, mas confirma que “existem sim registros de afastamento de servidores por questões relacionadas à saúde mental ou esgotamento no trabalho”, e afirma que pretende desenvolver um estudo para quantificar o total de profissionais nessa situação.

“Eu conheço médicos que saem da sala de Covid depois de dar a notícia de morte para um familiar e vão para o estacionamento chorar, mas ninguém consegue admitir que está passando por um processo de adoecimento mental”, relata o enfermeiro Humberto Tavares, de 41 anos. Humberto sentiu, ele mesmo, os efeitos da pandemia em sua saúde mental.

Há 21 anos, ele atua na área de enfermagem, sempre como urgentista, tanto no serviço público como privado. Epidemias não eram algo estranho à sua realidade: ele foi um dos que atuou também na linha de frente dos cuidados na época da epidemia de H1N1. A experiência, no entanto, não foi nada comparado à realidade enfrentada por ele e seus colegas nesse último ano.

“Eu gosto de ter cuidado com meus pacientes, eu acredito na prática humanizada. Teve um dia que encontrei larvas de mosca na boca de um paciente vivo, intubado. A demanda era tanta que o cuidado ficou prejudicado. Eu entrei em depressão, fui diagnosticado com estresse pós-traumático. Tenho ansiedade crônica e cheguei a tentar suicídio”, relata Humberto.

As cenas diárias presenciadas por ele e seus colegas nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e enfermarias com pacientes com Covid-19 não deixam nada a dever a nenhum cenário de guerra. Em um único turno, Humberto presenciou a morte de seis pacientes. Em uma sala com 11 idosos, dois saíram com vida. Quando uma morte acontece, o paciente intubado permanece com o tubo em sua garganta até a hora final de fechar o zíper do saco de óbito. O reconhecimento do corpo é feito por fotografias enviadas aos parentes pelos profissionais.

Depois de presenciar todas essas cenas, ele conta que se desesperava ao sair na rua e ver que todos levavam a vida normalmente. “Apesar da população ver esse número crescente de mortos, ela ainda está alheia à situação. Os governantes negligenciam, a população negligencia, está assustador. É muito grande o número de óbitos. Eu estou vendo isso no meu dia-a-dia, não apenas pela pandemia, mas também por arboviroses e outros agravos. É uma situação muito angustiante”, desabafa o enfermeiro.

Para ele, o pior momento foi o do anúncio da abertura dos shoppings centers na capital. Quando soube da notícia, Humberto se desesperou diante da possibilidade de um novo aumento no número de casos e, consequentemente, de óbitos. Após duas semanas internado, o enfermeiro com duas décadas de experiência teve de pedir afastamento dos serviços para tratar de sua saúde mental. Como muitos profissionais, ele possui dois vínculos profissionais: um com o Estado do Rio Grande do Norte, e um com o Município de Natal. No Estado, conseguiu ser realocado para serviços administrativos. Já no município, foi encaminhado para o transporte sanitário. Mesmo com a mudança de função, os impactos permanecem. “Todos nós vamos ficar com sequelas”, alerta.

Faltam serviços de apoio à saúde do servidor

Apesar do “cansaço generalizado”, a compreensão sobre a necessidade de acompanhamento psicológico e de cuidado com a saúde mental ainda está distante da realidade de muitos profissionais de saúde. O problema, relatam, começa no acesso: faltam serviços especializados e de ampla divulgação que possam dar conta da demanda.

“Se existem serviços, eles não chegam até nós. O servidor acaba tendo que se virar sozinho, ou através de um plano de saúde que ele paga, ou em consultas particulares. Durante a pandemia, o Serviço de Psicologia está sendo realizado remotamente, e isso de certa forma complica para nós, porque fica um número de profissionais reduzido para nos atender.”, diz Kelly Jane, enfermeira e diretora do Sindicato dos Servidores da Saúde do RN (Sindsaúde/RN).

A nível estadual, por exemplo, o RN dispõe do Centro de Referência de Atenção ao Trabalhador (CEREST), que possui unidades regionais em Caicó, Mossoró e Natal. Em Caicó, a Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap/RN)  informou que não estão sendo realizadas atividades de assistência. Em Natal e Mossoró, há presença de psicólogos, mas a demanda de atendimentos em relação ao número de profissionais não foi informada à reportagem até o fechamento dessa edição.

Além do CEREST, o Estado possui parcerias com serviços universitários de psicologia e cinco Núcleos de Atenção à Saúde do Trabalhador (NASST) com psicólogos, distribuídos em alguns dos principais hospitais do Estado, como os Hospitais Monsenhor Walfredo Gurgel e o João Machado, em Natal, o Deoclécio Marques de Lucena, em Parnamirim.  

No âmbito do município de Natal, a Secretaria Municipal de Saúde disponibiliza, através do Núcleo de Saúde do Trabalhador, o projeto chamado “Cuida-se para se cuidar”, que atende os servidores encaminhados a partir de alguma unidade de saúde ou que procuram o serviço por demanda espontânea.

De acordo com a Secretaria, o projeto tem demanda aberta e conta com uma equipe com psicóloga e psiquiatra que realizam acolhimento e o atendimento às necessidades iniciais desse servidor, realizando encaminhamento para a rede de atendimento especializado quando necessário. A divulgação, no entanto, é um obstáculo: nenhum dos entrevistados pela TRIBUNA DO NORTE para a produção dessa reportagem conhecia o serviço.

Para muitos profissionais, no entanto, o problema começa antes de chegar aos serviços especializados: eles relutam em admitir que a exaustão física e emocional está associada à questões de saúde mental. O próprio Humberto conta que viveu na pele o estigma e o preconceito após ter adoecido. “Os profissionais de saúde têm quase uma aversão em relação ao tema da saúde mental”, relata.

Bullying

Depois de sua tentativa de suicídio, ele teve de lidar com piadas de colegas que o chamavam de “louco’. “Eu tive problemas com bullying, com colegas que diziam que eu não deveria estar ali, que eu deveria voltar para o João Machado porque eu era louco. Ou seja, além de tudo, tive que passar por um constrangimento no lugar onde eu deveria ter sido acolhido”, desabafa.

Novo pico volta a agravar situação dos profissionais

Ao verem diminuir o número de casos a partir do segundo semestre de 2020, muitos profissionais, como Ivanízia Soares, sentiram uma onda de alívio. “Era como se pudéssemos respirar pela primeira vez”, diz a fisioterapeuta. No hospital em que ela trabalha, a enfermaria Covid-19 foi extinta e o fluxo de atendimentos começou a normalizar. O alívio durou pouco. Desde o ano novo, ela e os demais profissionais veem crescer o número de casos “como nunca antes”, relata.

“Parecia que tudo estava indo muito bem, os casos estavam diminuindo. De janeiro para cá, voltamos a ter casos de Covid dentro do hospital. Esse mês, já não tínhamos mais para onde encaminhar esses pacientes”, relembra. O hospital não voltou a ser totalmente dedicado a pacientes com Covid, mas a ala especial para pessoas infectadas pela doença precisou ser criada mais uma vez. “Na semana passada, eu senti o baque emocional dessa realidade”, completa Ivanízia.

Na primeira semana de março, a fisioterapeuta perdeu um colega para a doença, e se emociona ao pensar no que está por vir. “Eu não sei como vai ser agora, nessa nova onda. Como o número de casos foi diminuindo, as coisas estavam sendo levadas com mais tranquilidade. Mas o peso de ter saído e de voltar para aquele cenário tem pesado muito. É provável que esses afastamentos por questões de saúde mental e esgotamento físico aumentem”, comenta apreensiva.

Saúde destruída

Até o mês de dezembro, segundo dados da Sesap, 46 profissionais da saúde haviam morrido em decorrência da doença no Estado. O fato de ter conseguido se vacinar não tranquiliza a fisioterapeuta, que continua a ter medo de poder transmitir a doença para alguém.

“Eu entendo que tem muitas pessoas que precisaram procurar assistência psicológica por causa do isolamento. Não é fácil. Mas a nossa saúde mental, de quem está da porta para dentro dos hospitais, também está destruída. Não é apenas sobre minha saúde, é sobre saúde coletiva. Por isso precisamos nos cuidar mais do que nunca”, alerta.

Sobrecarga e déficit contribuem para adoecimento

Um terceiro fator influencia na dificuldade de muitos dos profissionais em reconhecer a necessidade de ajuda: o déficit de profissionais nas unidades de saúde. De acordo com uma estimativa do Sindsaúde/RN, há um déficit de 5 mil pessoas de todas as categorias profissionais nos serviços de saúde da capital.  A fisioterapeuta Ivanízia Soares, de 32 anos, foi uma das que sentiu o peso do medo de adoecer e sobrecarregar ainda mais seus colegas. Ela, como Humberto Tavares, possui dois vínculos empregatícios, um com o Estado e outro com o Município do Natal.

“É muita carga. Está sendo muito puxado, sofrido. Ano passado, as férias dos servidores foram suspensas e, no fim do ano, em outubro, é que começaram a ser liberadas de novo. Agora, em fevereiro, as férias foram cortadas mais uma vez do município. Nós já estamos esgotados faz tempo.”, conta Ivanízia.  Ela também teve de pedir afastamento das atividades para cuidar da saúde mental após o pico da primeira onda em 2020. “Desde então, eu tenho feito terapia, e é isso que está me sustentando”, afirma a fisioterapeuta.

A enfermeira Kelly Jane relata que há uma pressão para que os profissionais apresentem uma performance de “linha de produção’. “Nessa pandemia, a gente não pode adoecer. Mesmo atuando na linha de frente, ainda é exigido de nós a eficiência de uma linha de produção. É como se estivéssemos lidando com produtos inanimados, com máquinas. Dizem que temos que atender rápido para desafogar a demanda, mas como vamos atender rapidamente um paciente Covid?”, questiona Kelly. Segundo ela, “a conta do colapso” está sendo colocada nas costas da categoria. “O colega vai se sobrecarregar porque cada adoecimento representa uma baixa a mais”, afirma.

Ela diz que a situação se agrava entre os profissionais que possuem contratos temporários. Convocados pelo Município para atuar na linha de frente, muitos não possuem benefícios como adicional noturno e de insalubridade, e outros sequer recebem vale-transporte. O congelamento das férias feito em 2020 e renovado por 60 dias em 2021 é outro ponto criticado. “É triste, parece que nosso sofrimento não está sendo levado em consideração”, diz.

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